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PECUÁRIA DE CORTE: QUALIDADE NA PRODUÇÃO DE CARNE

Eduardo Francisquine Delgado
Laboratório de Anatomia e Fisiologia Animal
Departamento de Zootecnia – ESALQ/USP
Piracicaba, SP
        

INTRODUÇÃO

         Na história, a necessidade de pesar, medir e classificar o que se produz, além de estabelecer métodos para verificar a qualidade das produções está presente desde que a agricultura e a vida em sociedade foram estabelecidas. Na cadeia da carne bovina não foi diferente. Em alguns países surgem no início do século 20 sistemas de classificação e tipificação de carcaça. As normas, regulamentos técnicos, metrologia (a ciência das medições) e a avaliação de conformidade compõe estes sistemas, que servem de base para a comercialização de carcaça e carne.
         Em 1946, o mestre em Zootecnia da ESALQ Nicolau Athanassof já chamava a atenção para a apreciação das carnes, dizendo o seguinte: “Entende-se por qualidade de carne, o conjunto de características procuradas pelo consumidor e que habilitem a dizer: a carne é de primeira, segunda ou terceira qualidade, de acordo com o seu valor real e a classe de bovinos que a forneceu. A inspeção das carnes nos matadouros comporta pois um exame feito sobre os bovinos em pé e outro, sobre a carcaça e as vísceras.” 
         Portanto, embora não seja uma idéia nova, a normalização através da classificação de carcaças nos frigoríficos brasileiros talvez venha representar o passo inicial para sustentabilidade da cadeia e obtenção de qualidade na produção da carne.     
         Os  principais objetivos desta normalização:

  • Facilitar comunicação – estabelecer características para um produto, processo ou serviço, identificadas de forma objetiva e demonstrável, criando uma linguagem comum entre quem fornece e quem compra;
  • Economia – redução de custos por meio de racionalização e ordenação de processos e das atividades produtivas;
  • Proteção do consumidor – leva em conta expectativas dos consumidores e estabelecem mínimos legítimos necessários.

         Estas normas podem ser estabelecidas dentro de uma propriedade, por entidades setoriais, sociedades científicas , ou ainda por consórcios de organizações. As normas terão o valor que o mercado lhes reconhecer. O reconhecimento virá da aproximação das normas estabelecidas com as expectativas dos consumidores da carne bovina.
        
         O setor da carne bovina

         Existem duas possibilidades de atuação na pecuária de corte para produzir com a noção de padrão de qualidade que visa atender ao consumidor de carne:
         1) Produtividade – Decisão quanto a genética (raça, linhagens, cruzamentos) seria a primeira etapa de um controle de qualidade, pois não é possível através do gerenciamento (nutrição, manejo, etc...) superar problemas com gado de genética inferior. Partindo deste ponto, teríamos a combinação com manejo-ambiente [sexo, castração, vacinação, fase de crescimento ao abate (peso e idade), engorda a pasto, semi-confinamento, confinamento, apartação e transporte para o matadouro etc...]  influenciando nas características da carcaça e/ou carne.


Tabela de pontos comuns de controle de qualidade

Processo

Ponto de controle

Potenciais impactos na qualidade

 

Genética/cruzamento

Avaliação do bezerro
Seleção de reprodutor
Seleção de fêmeas de reposição
Combinação de raças (tipos)/sistemas

Características de carcaça
Desempenho
Temperamento

 

Manejo do gado

Castração
Desmame
Vacas prenhes
Animais para engorda
Transporte

Escoriações
Injúrias no couro
Lesões em locais de injeção
Características de carcaça
Temperamento
Desempenho

 

Controle de parasitas

Parasitas internos
Parasitas externos
Injúria no couro
Injúria no fígado (intoxicação)

Lesões em locais de injeção
Segurança sanitária

 

Nutrição

Manejo de pastagens e forragens
Suplementação:
Minerais e vitaminas
Energia e proteína

Características de carcaça

 

Manejo de descarte

Tempo apropriado
transporte???

Características de carcaça
Escoriações
Injúrias no couro
Condenação

 

        

         2) Qualidade e padronização do produto – sexo e idade do animal, peso,   conformação e acabamento da carcaça permitem agrupar produtos com expectativas de obtenção de qualidade diferenciada da carne.
        


Tabela de padrões para a indústria de carne
 

 

Desejável

Indesejável

 

Peso da carcaça (kg)/@

240 – 270/16 a 18@

< 220/15@ ou > 270/18@

 

Maturidade (número dentes incisivos permanentes/ idade aproximada)

Até 4/ 28 a 36 meses

> 6/ acima de 42 meses

 

Acabamento da carcaça (cobertura de gordura, mm)

3 - 6

< 3 e > 6

 

Área de olho do Lombo (cm2)

75 a 80

< 65 e > 100

 

         Na modificação das características da carcaça e carne incluem-se fatores quantitativos citados acima e ainda aqueles qualitativos, sendo ambos de alguma forma interligados. Quais os fatores, como verificá-los e como estão relacionados constitui um desafio tecnológico para todos os agentes que estão de alguma forma interessados na cadeia da carne.
         Quanto aos fatores quantitativos:
         A composição da carcaça pode ser verificada pela desossa e elaboração dos cortes cárneos e análise da composição química (umidade, proteína, gordura, minerais ...). Estas avaliações requerem um grande investimento de recursos e portanto não são ainda comumente utilizadas na indústria frigorífica. As medidas ou avaliações seguintes são normalmente utilizadas como indicadores de composição de carcaça:

  • Medida da espessura de gordura que recobre a carcaça em pontos específicos, fazendo-se ajustes subjetivos (Avaliação subjetiva do acabamento ou cobertura da carcaça, atribuindo escores segundo uma escala pré-definida) – importante para a qualidade visual dos cortes e para proteção da carne contra resfriamento muito rápido (enrijecimento excessivo pelo frio);
  • Medida da área do olho de lombo, seção transversal do m. Longissimus dorsi – indicador indireto do crescimento da massa muscular e relacionado com o rendimento em termos de cortes principais;
  • Peso da carcaça – mínimo para garantir alguma massa muscular e a partir de um determinado ponto do crescimento, que depende do tipo de animal, tem impacto negativo no rendimento por ocorrer apenas acúmulo de gordura;
  • Avaliação subjetiva da conformação (relação carne/osso), onde carne equivale à soma de músculo e gordura, ou da musculosidade (relação músculo/osso), atribuindo escores segundo uma escala pré-definida – importante para rendimento de cortes, e no caso de tipos de animais mais musculosos diferencia a produção de carne magra;
  • Avaliação subjetiva da proporção de gordura interna (GRPC - gordura renal, pélvica e cardíaca ou inguinal), nos países onde essa gordura ou sebo permanece na carcaça durante o resfriamento.

         Nos Estados Unidos, a indústria de carnes utiliza-se destas medidas para tipificar a carcaça em um índice chamado “ classe de rendimento (yield grade = YG)” , que tem relação com o rendimento dos principais cortes cárneos (parte do dianteiro e o traseiro especial) desossados e com gordura aparada.
         Exemplo de YG = 2,5 + 0,1 (espessura de gordura em mm) + 0,0084 (peso da carcaça quente, kg) + 0,2 (GRPC,%) - 0,05 (AOL, cm2)
          rendimento dos principais cortes (%) = 51,34 – 0,23 (espessura de gordura em mm) -  0,02 (peso da carcaça quente, kg) – 0,462 (GRPC,%) + 0,116 (AOL, cm2).
        


Tabela de Conversão de “Classe de rendimento” em rendimento de cortes especiais, desossados e aparados

Classe de rendimento

Rendimento de cortes
(%)

1,0

54,6

2,0

52,3

3,0

50,0

4,0

47,7

5,0

45,4

No Brasil existem equações semelhantes, como a descrita por Felício. Cortes Comerciais Brasileiros - CCB (%)
                                                        = 60,33 – 0,015 (peso da carcaça quente,kg)
                                                        – 0,462 (espessura de gordura, mm) + 0,110 (AOL, cm2).
         Exemplo de CCB (%) = 60,33 – 0,015 (272kg) – 0,462 (5 mm) + 0,110 (75 cm2) = 62,2% de carne dos CCB, desossados e com 5 mm; não inclui a carne da ponta-de-agulha.
         Ilustração da condição corporal e ´classe de rendimento´(YG)

 
                           YG = 4,0



                            YG = 3,0


                            YG = 2,0

        
         Na avaliação dos fatores qualitativos, consideramos que:
         A qualidade da carne proveniente de cada carcaça também apresenta grande variação quanto ao aspecto visual (cor, textura e firmeza) nos pontos de venda e quanto aos atributos relacionados à apreciação (maciez, suculência, e sabor/aroma) da carne preparada para o consumo, isto é, cozida ou assada.
         Os testes para avaliar tais atributos enfrentam barreiras semelhantes às enfrentadas pela medição de composição de carcaça. Desta forma, os indicadores listados abaixo são utilizados para predizer quão macia, suculenta e saborosa será a carne após a cocção. 

  • Maturidade fisiológica do bovino abatido, avaliado pelo grau de ossificação das cartilagens das vértebras do sacro, lombares, e torácicas, com ajustes pela luminosidade da cor da superfície de um corte da carne, bem como pela textura; no Brasil, como em alguns outros países, a maturidade é avaliada pela erupção e crescimento dos dentes incisivos permanentes; Quanto mais velho o animal, maior quantidade e insolubilidade das fibras de colágeno que fazem parte da aponeuroses e outros tecidos de preenchimento e ligação com os tendões na carne, conferindo uma textura mais grosseira e menor maciez;
  • Marmorização (“marbling”), ou gordura intramuscular, também conhecida como gordura entremeada, que está relacionada ao genótipo, à fase da curva de crescimento e ao nível energético da ração do bovino, que por sua vez estão associados à velocidade de ganho de peso e composição deste ganho. Além disso, a marmorização parece funcionar como um seguro contra abuso no ponto final de cocção da carne;
  • Cor da carne e da gordura, avaliada na superfície da carcaça ou na superfície denominada área do olho do lombo (contra-filé). A cor tendendo ao creme-claro, por exemplo, aponta para um animal jovem, alimentado com ração, em confinamento. Já a cor da carne (tecido muscular) é indicador de maturidade fisiológica, pois ocorre aumento do conteúdo do pigmento avermelhado com a idade, sendo a cor vermelha mais escura um indicativo de animal mais velho.

         Novos indicadores tem sido aplicados na prática comercial e industrial de outros países visando alterar a qualidade da carne produzida a partir de carcaças de bovinos jovens:

  • Composição racial do gado, mais especificamente as proporções de Bos indicus e Bos taurus no genótipo;
  • Tipo de pendura da carcaça durante o resfriamento ou pelo menos nas primeiras dez horas de resfriamento, quando feita pelo osso ísquio da bacia pélvica (ponta das nádegas), diminui a necessidade de maturação;
  • Tempo de maturação, que segundo o MSA – Meat Standards Australia, deve ser de no mínimo cinco dias, porque influencia a apreciação da carne.

         Normalização pelo novo Sistema Brasileiro de Classificação de Carcaça

         Os critérios adotados pela IN (Instrução Normativa do MAPA, 2004) nº 9 para classificação das carcaças são o sexo e a maturidade, o peso e o acabamento.

  • Sexo - verificado pelo exame dos caracteres sexuais, com as categorias: Macho inteiro (M), Macho castrado (C), Novilha (F), e Vaca de descarte (FV).
  • Maturidade - verificada pelo exame dos dentes incisivos, com as categorias:

         Dente de leite (d) - animais com apenas a 1ª dentição, sem queda das pinças;
         Dois dentes (2d) - animais com até dois dentes definitivos, sem queda dos primeiros médios da primeira dentição;
         Quatro dentes (4d) - animais com até quatro dentes definitivos, sem queda dos segundos médios da primeira dentição;
         Seis dentes (6d) - animais com até seis dentes definitivos, sem queda dos cantos da primeira dentição; ou
         Oito dentes (8d) - animais com mais de seis dentes definitivos.

  • Peso da Carcaça - verificado mediante pesagem da carcaça quente (em kg).
  • Acabamento da Carcaça - verificado mediante observação da distribuição e quantidade de gordura de cobertura, em locais diferentes da carcaça (regiões torácica, lombar e no coxão), com as categorias:

         (1) Magra  - gordura ausente; (2) Gordura escassa  - 1 a 3 mm de espessura; (3) Gordura mediana  - acima de 3 e até 6 mm de espessura; (4) Gordura uniforme  - acima de 6 e até 10 mm de espessura; (5) Gordura excessiva  - acima de 10 mm de espessura.
         As peças e cortes, serão identificados (as) com os códigos dos parâmetros sexo, maturidade e acabamento com carimbos nas peças com ossos e etiquetas nas embalagens dos cortes desossados. As identificações serão mantidas até o consumo industrial ou exposição do produto para venda ao consumidor.

         Limitação

         A classificação de carcaça não garante a qualidade do produto carne quanto aos atributos atrativos para o consumo, todavia seria uma maneira de padronizar a linguagem da cadeia aumentando a transparência e facilitando os negócios bem como auxiliando em verificação de resultados pelos pecuaristas. Como afirmado anteriormente, com certeza seria um passo interessante em direção a uma visão de produção com qualidade.
                  
         Tendências de Requisitos técnicos a serem incorporados ao mercado da carne a médio prazo
        

  • Controle de resíduos biológicos – hormônios, medicamentos, antibióticos (Produtor);
  • Bem-estar animal (Produtor);
  • Boas práticas agrícolas (Produtor);
  • Segurança alimentar (APPCC) (Indústria);
  • Rastreabilidade (Produtor e Indústria).

         Iniciativas ligadas às tendências do mercado:
         Sistema agropecuário de produção integrada – GAP na agropecuária = Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA);
         Certificação da produção responsável de carne – WWF;
         Sistema nacional de rastreabilidade da carne.

         Exemplos de normalização no setor

         Iniciativas voluntárias de normalização têm foco no aumento da competitividade e inserção diferenciada dos produtos nos mercados.
         Implementação de denominação de origem controlada para a carne dos pampas meridionais – RS.
        
         Desafios

         A conscientização dos diversos atores do segmento acerca do uso de normas técnicas ainda é pequena. Disso resulta pouca compreensão acerca do papel da normalização e dos benefícios que pode proporcionar. A cadeia de carne é pouco articulada do ponto de vista tecnológico – Exemplo: Classificação de carcaça – para alguns altamente desejável enquanto outros não têm interesse na implementação. 

        

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